quinta-feira, 1 de março de 2012

A Inveja é uma Reforma Abortográfica

Era uma vez um dicionarista que tinha inveja de outro Dicionarista, que era muito mais famoso do que ele.

O que mais corroía o dicionarista era a substantivação do nome do outro, o fato de seu prenome ter se tornado nome comum: um sinônimo da própria palavra 'Dicionário'.

Mais preocupado com a vaidade do que com o bom senso ou o respeito a sua língua-mater, ele arquitetou uma forma de suplantar a fama do outro. Inventou uma reforma abortográfica, e preparou um dicionário – que levava seu próprio nome na capa, é claro – que contemplava de antemão as modificações que desejava impor. O fato de ser completamente descabida não lhe fazia a menor diferença: quando a reforma fosse aprovada, o dicionário com o seu nome passaria a imperar como referência abortográfica. E ele se lançou tenaz à tarefa de aprovar seu estrupício.

Tarefa esta que se revelou bem mais difícil do que o esperado – o que era explicável pelo fato de se tratar de uma proposta que afrontava a erudição e a inteligência. Por exemplo, a exclusão do acento diferencial na palavra ‘pára’, diferenciando o verbo da preposição. A publicação de uma matéria com o título “Novo goleiro para o Corinthians” no caderno de Esportes do jornal O Estado de São Paulo deixaria o leitor na dúvida: um novo goleiro teria parado o “todo-poderoso”? Ou teria sido contratado um novo goleiro para o “timão”? Com a reforma abortográfica proposta, até um não-corinthiano teria que ler a matéria para saber o que estava acontecendo. A oração deixava de ser auto-explicativa!

Ou então o surgimento de “vogais-excrescência”: com a absurda abolição da maioria dos hífens, palavras como ‘moto-serra’ passariam a ser grafadas ‘motosserra’. A separação das silabas evidencia o descalabro: mo-tos-ser-ra. “Tos”? De onde vem este “tos”, que não existia em nenhuma das duas palavras originais???

Também o desaparecimento de alguns acentos – mas não todos – sem qualquer lógica ou regra defensável, mas com base em uma profusão de exceções, causou asco a quem se aprofundava no conteúdo da Reforma.

Mas a cereja do bolo fecal era a proposta de fim do trema. O trema não é um acento, mas sim um indicativo de pronúncia. Assim, não faz qualquer sentido incluir sua exclusão em uma reforma abortográfica. E mais, tal exclusão representava muito mais do que um condenável empobrecimento da língua: criava uma impossibilidade de se saber qual a correta pronúncia de diversas palavras.

Dada a completa estupidez da proposta, o tempo passou além do que o dicionarista esperava, e ele acabou morrendo. Mas aquele rebento confuso e disforme continuou se movendo nas bureaucracias daquele País, e – dada a completa estupidez da proposta – acabou indo bater nas mãos do Presidento. Ora, tratava-se de um Presidento de reconhecida ignorância e preguiça, que já chegara até mesmo ao absurdo de afirmar na abertura de uma Bienal do Livro que “ler um livro dá uma preguiça...”! E o Presidento, com seu objetivo pragmático de nivelar as coisas por baixo e deixar tudo mais fácil para os incultos ignorantes preguiçosos, acabou por aprovar a Reforma Abortográfica. Ficou uma herança maldita para os habitantes tanto daquele País como dos demais que porventura usassem a mesma língua.

Alguns escritores puristas e autores de Blogs – como “Uma Toupeira Em Netuno”, por exemplo – optaram por se manter fiéis à muito mais inteligente ortografia anterior. Tinham consciência de estarem se prejudicando, pois em breve seriam encarados como dinossauros que só faltavam escrever ‘Pharmácia’, ‘insecto’ ou ‘pateo’ por exemplo. Mas se ofereceram em sacrifício, tanto como uma homenagem aos tempos de pessoas mais cultas como aquele Dicionarista original como também como resistência ao ininterrompível avanço da mediocridade. Afinal, como disse Marcelo Nova, “tem que ter cultura pra cuspir na escultura”.

E todos viveram infelizes para sempre.


Disclaimer: os personagens desta parábola são fictícios. Qualquer semelhança com qualquer pessoa real da qual você tenha notícia... a responsabilidade pela inferência é sua!


(fev/2012)

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