(texto publicado na revista CITI NEWS ano 21 número 191 em março de 1999, no jornal INFORME AaA PUC-RIO ano VI número 30 em abril de 1999 e na REVISTA CREDICARD edição 16 no 2o. trimestre de 2004)
Em junho e julho de 1996 caminhei da França até o Cabo de Finisterre, na Espanha, pelo Caminho de Santiago de Compostela. Dormia em refúgios, igrejas, monastérios e eventualmente em pousadas. Tive bolhas, tendinitis, quebrei uma costela e sofri muito. Mas aprendi que grandes penitências trazem grandes recompensas, e muitos são os momentos de enlevo profundamente marcantes na vida de quem cumpre esta jornada.
ORIGENS E MITOLOGIA
Embora a versão corrente do nome Compostela seja bastante romântica (viria de "Campus Stellae", campo de estrelas, avistadas sobre a cova do Apóstolo) a verdade é que a origem do nome é "Compositum Tellae", ou seja, Cemitério: o corpo de São Tiago (Jakob, Iago, Jacques, James) teria sido encontrado em um cemitério, e sobre ele se ergue hoje a majestosa Catedral.
Dado seu aspecto religioso, a rota de peregrinação teve um enorme crescimento de popularidade como foco da resistência cristã à invasão moura no sul da Espanha, nos primeiros séculos deste milênio.
Segundo a mitologia antiga do Caminho, uma peregrinação destas absolve 1/3 dos pecados (equivalente a entre 20 e 200 dias de Purgatório); mas se for feita em um ano santo Compostelano (quando o dia de Santiago, 25 de Julho, cai em um domingo), então a absolvição é total! Cheque o calendário de 1999...
QUANDO IR E QUANTO TEMPO LEVA
A época ideal para peregrinar é do final de maio a setembro, primavera e verão no hemistério norte. Quanto à duração, como para quase todas as perguntas do Caminho, existem várias respostas; cada qual faz o seu tempo. Alguns preferem quase correr, acordando cedíssimo, saindo ainda no escuro e no frio, andando rápido e sem parar até o próximo refúgio; para eles, boa viagem ("Ultréia", como se diz no Caminho). Eu preferia acordar com calma, usar o refúgio quase vazio como uma pousada particular e começar "os trabalhos" lá pelas 7:30 da manhã.
De maneira geral, a disponibilidade de tempo determina a distância a ser percorrida, o meio de transporte e a velocidade. Quem faz a pé costuma cobrir 760 km’ em 30 dias; de bicicleta, a mesma distância é cumprida em 8-10 dias. Quase não existem mais peregrinos a cavalo. É necessário andar ao menos os últimos 100 km – ou pedalar os últimos 200 km - para se receber a Compostelana.
CREDENCIAL E COMPOSTELANA
Peregrinos e Peregrinas recebem uma credencial com espaço para carimbos registrando as igrejas, refúgios, monastérios e prefeituras de onde passou. É uma belíssima lembrança do dia-a-dia da viagem, e com ela preenchida se recebe um documento da Igreja ao chegar em Santiago: a Compostelana, em latim (inclusive seu nome!) comprovatório de que sim, você fez, você cumpriu toda a peregrinação. (Afinal, como os antigos campônios poderiam provar que o fizeram?)
Pode-se obter a credencial nas principais cidades do Caminho ou nas Associações de suporte a peregrinos. Temos no Rio a "Amigos da Rota Jacobea", e em São Paulo a "Associação de Amigos do Caminho de Santiago".
MATERIAL
O que levar: o mínimo indispensável. 5 peças são básicas: mochila, botas, cantil, cajado e chapéu. Felizmente temos moderníssima tecnologia para os dois primeiros (a bota é a escolha mais importante da viagem); e cantil e chapéu são muitos fáceis. O cajado é crucial: sua Trindade, seu terceiro ponto de apoio, formando um plano com os 2 pés; tua alavanca nas subidas e freio nas descidas; defesa contra os cachorros (sim, são muitos no Caminho); suporte para a mochila quando seus ombros estão doendo; bengalão quando se está exausto; e brinquedo quando se está feliz.
Roupas: uma calça leve e resistente (nada de jeans!), três camisetas, um casaco, uma bermuda, sandálias para a noite (os pés precisam respirar). Muito protetor solar e hidratante. Um saco de dormir é essencial, pois os refúgios oferecem beliches sem roupa de cama e você dorme dentro do saco: muito prático.
O símbolo do peregrino é a concha, que simboliza as mãos juntas, vazias e abertas para o que se queira oferecer a ele: água, abrigo, alimentação, ensinamentos. O uso da concha ao pescoço ou na mochila diferencia o peregrino dos caminhantes e turistas mochileiros.
AONDE COMEÇA O CAMINHO?
Diz-se que o Caminho começa no momento em que você decide fazê-lo; ou ainda que o Caminho está dentro de cada um, e que se pode até percorrê-lo sem sair de casa. Quem sabe? O seu pode estar começando agora...
De qualquer maneira, o Norte da Espanha é "onde todos os caminhos se encontram", e é a trilha tradicional. Os peregrinos brasileiros costumam começar em Saint Jean Pied de Port, na França, no pé dos Pirineus. O Caminho segue pelas províncias de La Rioja, Castilla, El Bierzo, Galícia... todas regiões de vinhos de altíssima qualidade.
O trajeto é feito no sentido Oeste, o que significa que o peregrino segue sua sombra por todo o tempo. À noite, a sinalização da peregrinação é ainda mais simbólica: estamos exatamente abaixo da Via Láctea, e ela mostra a direção a seguir.
O caminho passa por algumas cidades maiores (Logroño, Pamplona, Burgos, León), mas elas são inóspitas para o Peregrino, que prefere os campos e os vilarejos. Nestas cidades "grandes" (100.000 habitantes) eu me hospedava em pousadas, virava turista e tirava os "day-off"s tão necessários para reposição das exauridas energias físicas. Era aí que eu me separava de grupos de conhecidos que na última semana estavam sempre por perto nos refúgios e restaurantes, e conhecia novos grupos que vinham atrás. Ao mesmo tempo uma sensação de desamparo e de renovação; lições de desapego.
PORQUÊ VOCÊ FEZ O CAMINHO?
Esta é a pergunta que mais se ouve antes, durante e depois do Caminho; e também aquela cuja resposta mais muda a cada dia ou situação. O próprio Peregrino se pergunta todo o tempo “o que eu estou fazendo aqui?”. Turismo, aventura, misticismo, religiosidade, filosofia, introspecção: a resposta varia ao longo da jornada.
Com o passar dos dias um significado mais filosófico e espiritual vai envolvendo o Peregrino. A vida é objetiva: caminhamos (uma média de 20 a 25 quilômetros por dia, em uma banda de 10 a 40), procuramos água, procuramos onde comer, onde dormir. Não se sabe se no refúgio vai ter banho quente ou papel higiênico, como se vai dormir, ao lado de quem. Mas é aí mesmo que o desapego se impõe; as necessidades são básicas, elementares, não há preocupação com besteiras, mas sim com o peso da mochila nas costas. E nos desfazemos de supérfluos: comecei a peregrinação carregando 12kg e acabei com 9kg.
Com o espírito livre, caminhando sozinho por florestas, matas, rios, estradas, trilhas, igrejas, vilas, montanhas, planaltos e desertos. conversando com desconhecidos, com uma dieta muitas vezes composta apenas por vinho e hóstia, o sentimento fica solto, e a percepção aguçada... Mas isto é para sentir, e não para ser contado.
REFEIÇÕES E HOSPEDAGEM
Os restaurantes apresentam um "Menu do Peregrino" (aprox. US$ 10) com prato de entrada, prato principal, vinho, pão e sobremesa; e com mais US$ 1 você toma um fortíssimo e inebriante café expresso, de lei em toda a Espanha. Os espanhóis adoram brasileiros, e a toda hora convidam para um vinho-cortesia com bate-papo. Aprendi - com um Padre - que um ou dois golinhos de vinho são muito energizantes para caminhadas matinais.
Os refúgios são praticamente de graça: em geral se contribui com quanto quiser; a maioria dá US$ 1 ou 2. Querendo ter vida espartana se pode gastar bem pouco (alguns fazem toda a peregrinação sem levar qualquer dinheiro, vivendo somente dos favores e doações de outros - uma dura tarefa auto-imposta); e quem quiser fazer turismo e passar muito bem também encontra ótimos hotéis paradores.
Optei por misturar turismo à aventura, e para cobrir 860 km. levei 48 dias, dos quais 9 sem caminhar, seja por turismo, seja por contusões que tive. Quanto maior o tempo, maior o prazer. A chegada chega a ser triste para o Peregrino, pois significa o término de dias tão significativos e gratificantes. Daí eu ter resolvido continuar por mais 100 km. até Finisterre.
FINISTERRE
O Caminho de Santiago está em verdade sobre uma antiquíssima rota de peregrinação até Finisterre, o "Fim da Terra" dos antigos, quando a Terra ainda era plana. Ali o Homem ia se defrontar com o Fim, com o seu fim, com a Morte, tão bem representados pelo pôr do Sol no imenso oceano sem horizonte. Ali também o Homem se encontrava com o Renascimento, igualmente bem representado pelo nascer do Sol no dia seguinte. Rituais de Fecundidade são representados em pinturas na pedra em imemoriais ruínas.
Finisterre assim representava (representa) não somente o fim de uma jornada, mas também o início de uma outra: a volta. O reinício, o recomeço, estando o Peregrino agora mudado. Os rituais não poderiam ser mais significativos: depois de ir até o fim da terra (onde há um Farol), você desce até o mar onde devolve sua Concha ao Oceano, queima suas roupas de Peregrino/a, mergulha totalmente nu/nua (em uma água gelada) e vê o Sol se pôr (ou morrer) no Mar. E então, retorna ao Mundo. Renascido.
Pouquíssimos peregrinos cumprem atualmente este ritual (um relato para potenciais candidatos a este trecho pode ser encontrado no e-ndereço http://www.caminhodesantiago.com/finis.htm). Acabei ficando uma semana em Finisterre comendo peixe, bebendo vinho, passeando por praias desertas inacreditavelmente belas e escrevendo muito.
Ao longo do Caminho se encontra muita história antiga, muita arte, muitas lendas e milagres. Se encontra amigos e se abre o olho para inimigos. Sua sensibilidade poreja, sua atenção é total, você não perde nada. E jamais esquecerá aqueles dias nos quais - mais do que nunca - sua vida fez total sentido.
(fev/1999)
sábado, 16 de janeiro de 2010
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Seu relato me levou com você eu que me sinto peregrinando por aqui desde o nascimento...
ResponderExcluirHi Dear,
ResponderExcluirQue alegria e surpresa eu tive ao procurar na Net a referência do caminho de S.Tiago com meus amigos e descobrir seu artigo no Panda...
Parabens pelo artigo!! Adoramos os comentários.
Vc tem que publicar suas viagens pq suas impressões são muito muito legais. Vc consegue transmitir as emoções de uma forma particular e diferente dos artigos de viagens.
Parabens!!
Inspirador!
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