(Comentário sobre uma passagem específica da peregrinação pelo Caminho de Santiago em junho / julho de 1996)
Foncebadón foi o único dia em que caminhei com companhia, exatamente por causa dos cachorros. Tive “causos” com perros em quase TODOS os dias da peregrinação, mas para não cansar vou contar apenas este.
Nunca tive uma boa relação com cães, e sempre temi especialmente os de Foncebadón. Chegando ao (delicioso) refúgio de Rabanal, tratei de criar alarde para conseguir companhia. Ainda por cima os hospedeiros nos estavam alertando quanto a uma infestação de víboras (!) no trecho, de forma que o estado de espírito era de bastante apreensão. Eu não estava ligando a mínima para as víboras, mas os cães... E dizia a todos:
- “Perros salvajes en Foncebadón!”
Formou-se um grupo de umas 15 pessoas, entre os quais 8 padres que peregrinavam juntos. Saímos cedíssimo, sem tomar café da manhã, antes do Sol nascer – outra exceção em minha jornada. Subindo o morro eu via a luz do Sol começando a se esparramar pelo Vale. Estava muito frio. E chegamos à cidade-fantasma ainda com pouca luz, cercados por névoa e brumas.
Foncebadón estava deserta (é claro). Em total silêncio. E todos nós fomos absolutamente respeitosos. Os padres formaram um círculo para rezar. E nós outros entramos na cidade. E fomos nos afastando uns dos outros. Dez, ou vinte metros. E só quando eu estava frente a frente, sozinho com aquele bicho preto de orelhas pontudas que parecia uma mistura de lobo com hiena é que entendi que neste caso estar a vinte metros dos outros é o mesmo que estar sozinho. Eu estava sozinho com o pior cachorro do Caminho, situação que temi por toda a viagem e para a qual achava que tinha me preparado com tanto cuidado.
O bicho ficou me olhando, e eu olhando para ele. Com o cajado em prontidão e a outra mão dentro do bolso cargo lateral do joelho segurando uma faca escondida. Ele olhando, eu esperando. Até que entendi que ele não ia atacar. Uma confiança foi me invadindo, e comecei a achar que o olhar era de fome. Peguei na mochila a bisnaga com jamón que seria meu desayuno e fui dando em pedaços para ele. Primeiro o pão, depois o (delicioso) presunto. Acabei dando o sanduíche inteiro, e ficando completamente eufórico de alegria. O bicho me acompanhou até a saída da cidade, às vezes ficava para trás e então se aproximava no maior galope. Fiquei amigo do cachorro de Foncebadón! Eu, que nunca me dera bem com cachorros, e que morria de medo deste!
Tive então pela primeira vez a absoluta certeza de que iria completar a Peregrinação, e em estado de total Felicidade ergui meu cajado na horizontal com as duas mãos. Uma americana documentou, e esta foto é tremendamente significativa em minha jornada.
Depois disto as víboras não poderiam mais me picar, pois flutuei por todo o caminho até Molinaseca. Creio ser este o melhor dia de toda a Peregrinação, você passa por lugares absolutamente fortes e lindíssimos, tudo pelo alto das montanhas e próximo ao Céu, pela Cruz de Ferro, por El Acebo, enfim: a consagração do Peregrino.
Fazendo o Caminho de Santiago, não esqueça de levar jamón e pão para o perro salvaje de Foncebadón. Com minhas lembranças.
(abr/1999)
sábado, 16 de janeiro de 2010
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Este é um dos mais significativos aprendizados que a estrada da vida me proporcionou, tambem passível de ocorrer enter os seres humanos (embora, com estes, sempre podemos nos surpreender): a verdadeira confiança se estabelece no vínculo, tal como você apreendeu nesta jornada. São linguagens não verbais, as quais me parece que devemos estar cada vez mais disponíveis...
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